domingo, 5 de setembro de 2010

Poesia concreta

Desde que me entendo por personagem, o espaço entre as linhas me intriga, porque é algo para além do subtexto, do pensamento que move a ação e do silêncio que precede o esporro. É lá nesse espaço que moram os fatos distorcidos, as meias-verdades, o desespero, a maturação e a esperança. Sim, ela mesma, a esperança, pensou que eu tinha me esquecido dela, né? Que nada, meu querido, eu sei tanto quanto você que, por mais que uma pessoa se diga cética, cética mesmo, tipo prima-irmã de São Tomé, lá no fundo, na calada da noite, quando os gatos já até deixaram de ser pardos, carrega um cadinho de esperança, nem que seja no viagra, nos homens ou na mega sena. É claro que não tem como ignorar que a vida vai em frente e que determinadas coisas simplesmente ficam pra trás, perdendo pouco a pouco a importância e a chance de dizer ao que vieram. Sei lá, Astor, tô aqui falando isso tudo, mas, por outro lado, também sei que é justamente nesse negócio de ter esperança que muita gente se fode de verde amarelo azul e branco, de uma forma bem brazilian fashion week from hell. Você deve estar achando que estou brincando ou que eu estou ficando louca, mas não é nada disso não. Outro dia, por exemplo, esbarrei na rua com um personagem que vi uma vez só na vida, numa suruba, e depois acabamos não nos encontrando mais, nem pra conversar, porque era só nas linguagens não-verbais que a gente funcionava de fato, sabe? Pois bem, como já tinha muito tempo que não nos víamos e ele estava cheirando a cigarro e com a barba por fazer, acabei aceitando o convite dele pra conhecer a cervejaria nova que abriu ali na Lapa. De cara já achei um bom sinal ele lembrar que eu gosto de cervejas diferentes e que simplesmente cuspo em Skols, Itaipavas e Antárticas. Ou seja, lá no fundo, mais precisamente entre o ponto G e a buceta, tudo transcorria de forma agradável e eu até pensei se não seria o caso de no passado eu ter sido um pouco exigente demais e não ter dado valor à linguagem do moço, que, olhando agora, depois da quarta garrafa, já me parecia bastante razoável. Pois bem, papo vai papo vem, comecei a me sentir à vontade com ele e comentei que, mesmo tendo perdido bastante peso desde nosso último encontro, continuava me achando gorda, afinal, quando sento, minha barriga ainda dá aquela dobrada, ao que ele respondeu, de forma veemente, que não, que eu não era gorda, mas que só dava pra perceber isso quando eu estava nua, com os volumes devidamente expostos e proporcionados. Eu posso com isso, Astor? O homem me come uma única vez, me reencontra e, só porque tá me pagando meia dúzia de Eisenbahn, já se sente na liberdade de falar sobre minha nudez assim de forma tão descarada? Fiquei pretérita! Onde já se viu isso? Eufemismo é bom e eu gosto! Mas sabe de quem fiquei com mais raiva? De mim, lógico, por ter dado pala prum personagenzinho de elenco de apoio da novela que tá passando no ‘Vale a pena ver de novo’. Duvido que um protagonista de minissérie meteria uma dessas. Jamais! Esse povo mais garboso entende de metáfora, esbanja nos sinônimos e, portanto, sabe usar uma entrelinha como ninguém, que mulher gosta mesmo é de um cadin de mistério e (por que não?) de uma mentirinha sincera de vez em quando, se possível acompanhada de flores. Ou de massagem nos pés. Ou dos dois juntos. Afinal, como já dizia minha tia-avó Neuza, molhadas, todas nós somos cegas, e, de pau duro, todos os homens, poetas. Agora chega que preciso descer, senão não pego a padaria aberta e hoje, mais do que nunca, preciso de um sonho, nem que seja de açúcar.

7 comentários:

  1. Maravilha!!
    Agora me diz:
    Que tipo de poesia os homens fazem de pau duro, Jupira?

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  2. Xiiii... só encontrou prosaico, esse anônimo aí.
    Jupira. Te dedico!

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  3. Olá, obrigada pelas visitas!

    Anônimo 1, as poesias são diversas, sendo que mais importante do que o gênero da obra, é a disponibilidade para o improviso.

    Anônimo 2, o que é que você me dedica, posso saber?

    Abraço e voltem sempre.

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  4. Sou o anônimo 1, Jupira. Só queria dizer que mais vale um pau na mão que uma poesia voando... rs. brincadeira, Jupira, você tem toda razão. Aliás, você sempre tem razão.

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  5. Oi, anônimo 1, obrigada por se identificar.

    Olha, concordo com você, mais vale um pau na mão do que uma poesia, esteja a mesma voando ou em terra firme.

    Quer saber mais uma coisa? Prefiro mil vezes ser feliz a ter um pingo de razão.

    Obrigada pela visita e volte sempre.

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  6. mas uma vez apoiada, amiga!

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  7. A sua tia-avó Neuza é incrivel Jupira, fale mais dela..rsrs...adorei este post!!!

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