terça-feira, 20 de julho de 2010

Para Linda

Oi, Linda, obrigada por trocar uns dedos de prosa conosco, agradeço sua visita e sua preocupação e, por tudo isso, hoje, mais do que pro Astor, minha fala vai pra você. Em primeiro lugar, me desculpe a demora em escrever, pode parecer estranho, mas a culpa não foi minha. Eu estava com as palavras nas pontas dos dedos, mas essa história de pertencer a uma autora é de lascar. Fico aqui cheia de vontade de fazer novos amigos e tenho que esperar pra interagir com o mundo enquanto a tal se desocupa dos oitocentos editais em que inscreve suas mil e novecentas ideias geniais. Como se eu não conhecesse o tipo. Pois bem, só eu, que nasci (e, portanto, dependo) dela é que sei. Agora, cá pra nós, não tem tempo pra se dedicar ao monólogos, mas vai conferir o blog pessoal dela pra você ver o que é bom pra tosse! De dois em dois dias tem alguma coisa nova. Tudo bem que a maioria é poema, desses que a gente tem que ler várias vezes em voz alta depois de beber quatro caipirinhas pra entender, sabe assim? Mas não vamos ficar aqui falando mal da autora senão vai parecer aquela peça do Pirandello que os personagens ficam vagando procurando um autor, uma coisa de louco. Aliás, quem nessa vida é (ou foi) personagem, não deve nem cogitar assistir essa peça, a não ser que leve um ansiolítico pra dar uma descomprimida básica porque senão o bicho pode pegar e porta anti-pânico, além de não ter em todo lugar, não tira o pânico de ninguém, vamos combinar. Mas, mudando de assunto, vou te falar uma coisa que ainda nem contei pra Astor, portanto, você será a primeira a saber: esses dias, em que a tal esteve ocupadíssima, eu aproveitei o benefício da onipresença que têm os personagens e fui pra Salvador. Menina, que loucura. Pras mulheres que passaram dos trinta aquilo lá é o Éden. É um tal de 'minha branca' pra cá, 'pega na minha mandioca' pra lá, que a pessoa fica toda trabalhada na acrobacia, num nível de emoção que jamais caberia em palavras. Aliás, palavra é uma palavra estranha, né? Olha, depois a gente conversa melhor, infelizmente vou ficando por aqui, que a talzinha precisa usar o computador agora, sabe assim? (um saco!)
Beijomeligaoumechamanoskype.
PS: a propósito, eu e Astor somos do tempo em que amigos não procriavam em cativeiro.

sábado, 10 de julho de 2010

Que tempo é esse?

Acho que os ônibus podem ser considerados espaços pra trânsitos extremos da coletividade e também curiosos lugares pra observar a vida em juízo ou como anda o juízo das pessoas ou simplesmente foder seu juízo com a má educação reinante ou, ou... bem, eu não posso deixar de compartilhar o que me aconteceu ontem voltando pra casa na hora do rush, bairro sem luz, engarrafamento caótico, Centro da Cidade. Olha... que tempo é esse o nosso, hein? (pausa contemplativa estúpida).

Eu sempre tive uma grande atração pela “história das mentalidades”- por causa de uma grande professora na faculdade. Ela praticamente eriçava os pêlos toda vez que dizia isso: “história das mentalidades”. A gente nunca imagina que tem um cara no mundo que de repente começa a estudar as mentalidades. E aí os historiadores dizem cheios de languidez: “história das mentalidades” (pausa contemplativa rascante).

A questão é que de lá pra cá, a partir da professora, meus pêlos também ficam eriçados quando ouço ou leio: “história das mentalidades”. Quase como achar uma chave mestra, uma moeda de ouro antiga, uma caixa de metal da bisavó, enfim. É isso. A verdade é que eu sempre fui interessado no que as pessoas tem dentro da cabeça. Mas uma só pessoa não me interessa tanto. Só num bar, a pessoa alterada. Mas não me entenda mal, não quero com isso dizer que adoro pessoas alcoolizadas o tempo inteiro, pelo contrário. A não ser que eu também esteja bem alcoolizado, porque o cara que não está bêbado ter que suportar quem está... é quase... é realmente insuportável. Mas os bêbados são dóceis. Essa é a verdade. Quando não são é porque o álcool não deixa. (pausa contemplativa pretérita).

Mas voltando à história das mentalidades. O que um período de longa duração pode revelar me deixa bastante curioso. Como não sei muita coisa sobre esse assunto, fico tentando catar, colher, pescar o que alguns grupos de pessoas, quando juntos, podem deixar transparecer. E os ônibus são incríveis. Quando não são incríveis – porque você pode não concordar – é porque o teu juízo tá fodido. (pausa contemplativa estúpida). Convenhamos que a real é que os ônibus podem foder teu juízo. Geralmente por um curto período. Se ao descer do ônibus teu juízo continuar fodido, pode crer, você já faz parte de uma mentalidade que eu não sei qual é. (pausa simplesmente) Será que meu juízo ainda está fodido? (Pausa). Prefiro pensar que só estou mentalmente impressionado com o nosso tempo. Ok.

O ônibus que eu estava não vinha cheio. Encheu quando parou no engarrafamento. Comecei a me perguntar por que as pessoas entravam em um veículo que não andava. Não obtive resposta. As pessoas continuavam a entrar. Entravam e se socavam. Eu que sempre ouvi minha mãezinha dizer que eu quando criança não era gordo, mas era “socado”. (pausa contemplativa sem respiração).

Cinco minutos de trânsito parado. Um senhor entra com seis bolsas de supermercado. Senhor magro, cansado, parecia doente. Pensei: como ele vai levantar essas seis bolsas pra passar na roleta? Ele levantou. Ele conseguiu. Mas uma das bolsas rasgou. Não foi culpa dele. Não se faz mais sacolas como as da Casa da Banha. Eram de papel, lembra? Você não podia colocar a carne que, num engarrafamento como esses, molhava e rasgava a bolsa. Não é nada disso que eu queria contar. Mas espere. (pausa simplesmente).

Uma mulher ao meu lado. Grande. Larga. Cabelos longos grisalhos. Aparentava ter seus quarenta e cinco anos, mais ou menos. Professora de Educação física – ela me disse. Ela queria reclamar do engarrafamento, do ônibus cheio, do ar que começava a ficar murrinhento dentro do veículo. Mas ela não conseguiu. Ela começou logo a dizer sobre uma suposta energia que estava presente ali, naquele momento. Ela vinha de longe. Estava voltando pra casa depois de estar em alguma celebração religiosa onde se bebe alguma coisa e se vê coisa e. Enfim. Ela não mais parou de falar. Havia uma mulher no andar de cima da casa dela que a atingia na madrugada e que sabia onde ela estava em qualquer cômodo da casa. Depois ela me disse que no ano 200 a.C ela era uma bruxa e que todas aquelas bruxas estavam tentando fazer com que ela voltasse pra elas. Depois ela me disse que estava pra abrir um hotel. Depois me disse que eu era uma pessoa boa. Muito boa. Bem. Não sou lá esse poço de bondade, mas tento que não tirem o melhor de mim. De repente ela começou a ver mortos dentro do ônibus. Pensei: se pros vivos não tem mais espaço, o que os mortos vem fazer aqui? Calei meu silêncio. Faltava ela ver duendes. E não é que os duendes também resolveram entrar no ônibus parado? Os duendes estavam animadíssimos, segundo ela. Faziam muita algazzara. Não gosto de duvidar das pessoas. E nem se trata disso. Mas o papo começou a ficar denso. Ela queria se livrar da mulher do andar de cima da casa dela. Eu estava sentado no canto do banco do ônibus. Sair dali ia me dar muito trabalho. Meu pé estava dormente. Mas logo eu esqueci do meu pé direito dormente quando percebi que na verdade ela não queria a morte da vizinha. Mas a própria. Por um instante eu não sabia mais em que mundo eu estava. Se um coelho branco de olhos vermelhos se atracasse ao vidro do ônibus eu não ia me espantar. Ela retirou a bíblia da sua bolsa. Começou a ler os salmos. Contou-me simultaneamente sobre suas várias visões cotidianas e suas vidas passadas – segundo ela foram muitas. Nenhuma recente. Sempre a.C. Nunca d.C. Depois fez menção de me presentear com um pequeno rosário de contas cristalinas que estava em seu pescoço. Mas acho que ela desistiu, não sei por que. Acho que eu queria aquele rosário. Quando percebi, o ônibus tinha andado. E eu já podia descer. O ônibus andou e eu não havia notado. Isso foi desgastante. O tempo parou ali. Despedi-me dela – não perguntei seu nome, e saí do ônibus. Fiquei de longe olhando. A minha mentalidade estava fodida. Meu juízo também. Que corpulenta foi aquela meia hora de engarrafamento. Quão titânicas eram as pessoas. Mas sem paz. Tive vontade de beber. Não cerveja, mas óleo de rícino. Não sei por que. Aquilo tudo foi muito estranho. Eu queria saber mesmo que tempo é esse. Só. Eu que gosto de saber o que tem dentro das cabeças das pessoas, talvez agora queira observar eclipses, peixes, mastruços. Poeiras. É.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

SSD

Outro dia ouvi um diálogo no ônibus pra lá de curioso, Astor. Eram duas mulheres assim da minha idade, entre trinta e cinco e quarenta anos, elas falavam meio alto e, mesmo se eu não quisesse, acabaria ouvindo a conversa delas. Uma era loira, provavelmente do pentelho preto, porque a sobrancelha denunciava uma carga genética adulterada pela água oxigenada. A outra era negra com um cabelo assim meio Grace Jones, lembra da Grace Jones? Pois bem, a loira do pentelho preto perguntou pra outra se a outra sabia quem ela comeria. Pra começar, achei muito feio elas falarem desse modo, onde já se viu, se referir ao amor dessa forma? Daí, a Grace Jones wanna be ficou curiosa e quis saber quem a amiga comeria e teve que engolir que o mancebo em questão era o irmãozinho dela de vinte e cinco anos, um menino que ainda gosta de playstation. Grace ficou tão aborrecida que chegou a acusar a amiga de pedófila, mas acabou sendo convencida pela outra que o garoto, apesar da pouca idade, já tinha adquirido uma postura de homem e havia inclusive parado de olhar pros peitos dela enquanto conversavam sobre os arcanos maiores e menores do tarô. Disse ainda que o menino pelo menos era uma pessoa da qual tinha referência e a ajudaria a se livrar da SSD que a acometia. Aí fiquei nervosa, porque não fazia ideia do que essa sigla significava e já tinha até perdido meu ponto só pra poder ouvir a história até o fim. Pois bem, papo vai papo vem, num determinado momento, a loira disse que sexo com desconhecidos tinha a vantagem de, mesmo nas vezes em que não era lá essas coisas, pelo menos não carregar consigo a necessidade de uma conversa para destrinchar as causas de uma ejaculação precoce ou de um ressecamento vaginal, essas eventualidades que acontecem quando você não sabe muito bem com quem está lidando. Foi então que entendi que SSD só podia ser a sigla para Síndrome do Sexo com Desconhecidos. Às vezes acho que eu podia ter feito Antropologia ao invés de Pedagogia, tenho esse feeling, sabe, Astor? Essa coisa de entender de um jeito peculiar as pessoas e seus comportamentos em relação ao grupo a que pertencem, acho que sou uma Margareth Mead wanna be, mas, enfim, voltando às duas, elas terminaram chegando num acordo em que uma poderia, sim, fazer sexo com o irmão da outra desde que não enfiasse o dedo em locais de onde o mesmo jamais sairia limpo. Fiquei tão horrorizada com aquilo, quem elas pensam que são pra falar em altos brados num coletivo dessa forma tão vulgar? Será que elas não percebem que têm um nome a zerar? A coisa me abalou de tal forma que, como eu já tava no ponto final e teria mesmo que esperar pelo menos meia hora até o próximo ônibus sair, sentei pra tomar uma batida de gengibre num desses botequins cariocas que imitam botequim paulista imitando botequim carioca, sabe? Foi até legal, tinha me esquecido de como era bom beber sozinha, sem ninguém pra me dizer a hora de pedir a conta ou uma água. Onde já se viu isso, pedir água em botequim? Água eu bebo em casa, que lutei muito pra conseguir minhas coisas e não vou sair por aí gastando feito uma perdulária descontrolada. Nem te contei, mas tô economizando à beça pra congelar meus óvulos e deixar pra depois essa coisa de decidir se quero ou não ser mãe, o que, venhamos e convenhamos, é muito mais importante do que me hidratar num botequim que nem sequer tem personalidade pra ser típico de lugar algum.