quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Alma tacanha

Já que estamos em época de eleição, fiquei pensando várias coisas e observando a linha férrea que dá na Central do Brasil.

Aqui em cima dessa ponte onde estou é agradável. Alguns moleques soltam pipas e outros moleques, que matam aulas, jogam pedrinhas lá embaixo, na linha do trem. Daqui de cima, também os malandros pulam e fogem da polícia. À noite é bom evitar passar por aqui. Mas com tudo isso, deste lugar que é alto fica bem gostoso ver a vida. Tava era muito calor aqui no subúrbio, Jupira. Agora melhorou um pouco. Ventou muito. E eu com calor não sou ninguém. Fiquei pensando: com tanto calor quase excomungo ou rejeito o sol, fonte da vida na Terra. E a água? Que não se sabe de onde ela vem. Quero dizer, vem do Rio Guandu, isso a gente sabe. Mas por onde ela passa ou o que passa nela é que não se sabe. Devia eu é fazer um curso técnico na Sedae. Ainda mais quando se sabe que no Rio Guandu tem tudo que não é de direito: sofá boiando, garrafa, saco de lixo, gente desovada, cabeça de cachorro. Melhor até parar por aqui. Tem dias que a água vem de cloro até a alma. O cheiro forte do cloro. O corpo da gente feito mármore que se clareia com água sanitária.

O subúrbio ainda tem certa beleza como nas lembranças do meu avô quando ele resolvia contar dos tempos do Rio Antigo. Mas a alma das gentes ainda é muito tacanha. Mas ainda sobra certa nostalgia de um tempo em que se colocava cadeira no portão e conversava com o vizinho. A tristeza é que não se vê mais essas coisas por aqui. A padaria da esquina é assaltada uma vez por semana, sem exagero. Fico com um aperto muito grande no coração porque todo dia quando eu vou lá comprar pão, o “baixinho”, sem ninguém saber, coloca de três a quatro pães a mais na sacola. Se eu peço quatro ele coloca seis ou oito dependendo do dia. O “baixinho” faz isso com todo mundo. Todo mundo sabe. A dona da padaria já disse que lá ele não serve mais pão, que não confia mais nele. Agora ele varre o chão e só. Mas nenhum cliente fala nada. Quero ver se ele perder o emprego quem é que vai lhe dar outro. O jornaleiro também foi assaltado outro dia. Essa banca de jornal da esquina, que fica ao lado da padaria, não sei como fizeram, mas a banca fica em uma escada que não sei como não despenca. Só vendo. Pra eu ler um jornal que preste __ se é que hoje os jornais prestam __ eu tenho que encomendar e pagar com antecedência pro jornaleiro porque os melhores jornais da cidade não têm saída nesse bairro. Tem é o tal do jornal que coloca os homens enforcados, desovados, decepados, sem um olho como matéria de capa. A casa ao lado da casa da minha tia foi surpreendida por tiros. Escutei daqui da minha janela do terceiro andar na outra rua. Mataram foi o marido de uma senhora que me viu crescer, lembro dela, lembro da voz dela, a voz fina que nunca consegui entender aquela voz. Outras: O coreto da pracinha foi tombado pelo patrimônio histórico. Isso eu li no jornal. Falaram da boa acústica dos coretos dos subúrbios.

Desde que eu cheguei aqui na casa de titia, tou sentindo moleza no corpo. Não sei se é calor ou se é uma tal de virose que anda solta.Sempre essas, hein: virose. Também penso que é da água. Da água que vem do Rio Guandu. Se não é da água deve ser da alma. Tem vírus de computador, deve ter vírus de alma, a ciência é que não descobre. Está mais ocupada é com clonagem. E o povo ocupado com beleza e lipo aspiração tentando afastar velhice e morte natural. As mulheres do subúrbio fazem ginástica. Vão pra academia e fazem abdominais e outras essas coisas. Umas não. Não tiram a barriga do fogão. Fico pensando na Elis Regina senão tivesse sido cantora. Estaria lá em Porto Alegre rodeada de panelas e filhos como eu ouvi dizer. O centro cultural aqui perto só funciona em época de aula na universidade. Nas férias fica fechado. Saiu no jornal que o povo daqui não vai ao teatro e ao cinema porque gasta o salário só com comida. A alma daqui do bairro é muito calada. Os homens cuidam dos carros nos finais de semana. Lavam os carros na calçada com o som alto. Carro é relíquia por aqui. E poder. Quem não tem, não é nada. As mulheres fazem telefonemas anônimos pras casas das amantes dos maridos pra meterem medo. Comércio forte aqui é boteco. Os meninos se não vão estudar viram chefes de boca de fumo. E a alma do bairro continua calada vendo tudo isso. A alma tem que comer pra suportar o tranco. E as últimas: a síndica que constrói um monte de casas na praia com o dinheiro que rouba do condomínio, é o que tão dizendo. Será que ela aprendeu isso com os candidatos? Bem, tanto faz ou tanto fez. Tomar posse é palavra de ordem. Eu posso? Eu tou é preocupado com alma. Alma tacanha como ela só.

Um comentário:

  1. Cada linha desse desse texto era uma rua de Quintino que eu percorria e sofria por conhecer bem sua alma... Lindo, mas pra mim foi trite cara... Minha infância de pedrinhas na linha de trêm... Derrepente ficou cinza, sem esperança pra sua moldura... Linda carta de amor, Astor...

    ResponderExcluir