domingo, 29 de agosto de 2010

Esculpindo nuvens

Hoje amanheci desacreditada da vida, Astor. Sério mesmo, uma coisa esquisita, de olhar pra multidão e não ver um número par, só ímpares, nenhum número primo, nenhuma constante pra chamar de minha, só um bando de variáveis bipolares. Não quero te assustar te dizendo essas coisas, afinal, você é um ser humano como outro qualquer, sem preparo pra ouvir minha descarga emocional, meus elétrons sem prótons, minha carência de nêutrons, minha química espalhada por um físico forte. Eu sou forte, sabe? Uma mulher grande. Meus peitos, por exemplo, não cabem nas mãos de um homem mediano. Isso porque agora sou manequim 42. Imagina quando eu era 46. É, meu querido, emagrecer é um processo estranho, porque você fica com dificuldade de aceitar que não é mais gorda, que a calça da loja do shopping cabe em você mesmo, que aquilo não é uma concessão da vendedora, nem do espelho, nem do zíper. Que o ‘gostosa’ escutado num raio de dois metros é pra você e não pra sua amiga de cinquenta e poucos quilos. Me sinto como se a manequim 46 que fui fosse a criadora e a manequim 42 que sou a criatura, sabe assim? Como se de mim tivesse nascido (ou morrido) outra. Mas nem sei porque tô te falando isso, acho que é porque acordei pensando no amor, nessa coisa cafona que é gostar de alguém. Na verdade, cafona, cafona mesmo, é saber que o tempo passa e a gente continua criando pessoas que não existem, só pra manter vivo o exercício de amar. Porque os viventes que estão por aí, na vida real, não fazem rir nem chorar, não deixam bambas as pernas e nem molhadas as calcinhas. Sim, não é porque sou personagem que não molho calcinhas, seu bobinho. Se quer mesmo saber, ando sempre com uma lingerie extra (de renda preta, naturalmente), na esperança de esbarrar com o homem que criei pra amar. Um boneco inflável sem ar, uma abstração cheia de palavras de ordem e ordem dos dias, um impedimento em meio ao fluxo, um acontecimento em meio à monotonia, um oásis sem deserto. Fico pensando nos requisitos desse homem e chego à conclusão de que prefiro que ele seja uma pedra bruta pra que de mim surja uma escultora. E, depois de pronta minha obra, só me restará fazer uma exposição, rodar o mundo, ficar famosa. E a todos aqueles que quiserem colocar preço em minha criatura, direi, em alto e bom som, com a boca cheia daquilo que vocês homens se esvaziam ao nos preencher: "Não quero gorjeta, faço tudo por amor".

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

No pátio de pedras perfeitas de H.

O criador e a criatura vão perecendo durante o caminho. Não me pergunte o que eu quis dizer com isso. Só sei que já disse.

Meu criador não me leva muito com ele. Por isso ando por aí sem rosto. Mas há tempos, Jupira, que incido sobre pontos, vírgulas, raízes e palavras de cartas dele. Não fico de lado, não. Não fico amarfanhado como se pensa. Vez em quando grito meu uivo também. E ando com vontade de dizer muitas tolices como um bufão. Dizer coisa sem coisa, nem lé nem cré, inventar nova língua, idioma sem concordes, vogais bucólicas, uma sanha verde. Queria mesmo ir a todos os lugares a pé, como se fazia em tempos imemoriais [tou com mania dessa palavra]. Estive por aí nesse lugar que você foi com sua dona (?dona?) – é que há essa sanha dos criadores que eu gostaria de contar. Mas ainda não vejo nada disso direito. Então deixe que eles sejam os donos. Nesse lugar que você foi, eu vi as cadeiras em roda. Eu vi todos indo embora também. Mas da vez que fui lá, eu fui o primeiro a ir embora. Pedi licença, coisa que não faço sempre na vida. Aprendi assim... Acho que essa coisa de pedir licença não equaciona. Quem entra, entra. Quem sai, sai. Estou falando isso porque ultimamente há tanta gente entrando em minha vida sem pedir licença, e eu não sei como isso acontece direito. Alguns entram e ficam. Outros entram e mal entram já saem. E eu continuo aqui nesse irreversível de mim que se faz reverso com tantas idas e vindas; é interessante. E pitoresco.

Hoje dei uma volta no quarteirão. Pra nada. Seria melhor andar naquele “pátio de pedras perfeitas” de H. Tenho uma saudade de H. que você nem sabe. De vez em quando deixo de visitar H. só pra poder fazer a visita no dia seguinte [?]. Mas se visito H. procuro não acordá-la. Ela pode se chatear. Se bem que sempre visito H. com um copo de “alcoólicas” na mão. Pra ela rir um pouco. Daí você colocou suas palavras pra leitora budista, e eu decidi colocar pra H. Meu corpo está em estado de “potlatch”. Nunca mais me livro dessa maldição. Isso me emociona e me liberta. Sonho com as tribos indígenas que Maus falava. Achei até uns brilhantes de minha tia que estavam escondidos em uma velha panela de pressão. Explodi os brilhantes e fiquei com a panela de pressão intacta. Valeu-me muito mais. Se bem que tenho pavor de duas coisas na vida: raios e panela de pressão ligada. Deve ser porque também tenho raios no sangue e pressão, umas artérias e todas aquelas coisas de dentro que são horríveis. Pros raios que partam.

H. era assustada e corajosa. Uma coragem que me comove ainda hoje. Só me lembrar da palavra que ela mais dizia quando via um ser (humano) que ela admirava: “deslumbrante”. Quando passei a ouvir isso de H. me bateu uma comoção tão forte, sabe, Jupira? Não há coisa mais incrível quando você reconhece que alguém como nós, meros mortais sem “deus dos sem deuses” é deslumbrante. Acho essa palavra a coisa mais fina. O melhor dos segundos de amor e humildade que alguém pode sentir ou ter. Ah. Dei pra sonhar com vôo. Com tudo que voa. Dei pra sonhar também com composições musicais. Mas não me lembro de nenhuma. Só as que já sei mesmo.

Em que lugar você está agora, Jupira? Coexistes?

Eu estou aqui no meio do “pátio de pedras perfeitas” de H.

A grande figueira venta na minha cara. Nos meus pés tem muita liberdade e trem de ferro.

Estou fritando um peixe.

- “Queres o peixe na manteiga ou no mijo?”

- “Vai fritando. Falavas?”

- “Falava que não há salvação, pois coexistes.”

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Para a leitora budista

Hoje minha autora me puxou pruma conversa. Confesso que me deu um arrepio na espinha, pensei que a coisa ia virar aquele papo mole que não acaba até a hora de alguém se aborrecer ou dizer que está tudo bem mesmo não estando, sabe como é? Eu acho que você sabe, você tem esse jeito de quem ri com o fígado, uiva pra lua e sonha em preto e branco, mas, voltando à vaca fria, eu disse um monte de verdades pra ela, que eu preciso de espaço e de tempo, como todo personagem que se preze. Falei também que gostava de atenção e de carinho, que sou dengosa, ora bolas. Devo ter feito um bico tão grande que ela resolveu me levar pruma reunião de trabalho. No caminho, dentro do vagão do metrô, ela me explicou que, dentro do processo criativo dela, a poesia, apesar de ser mais difícil de ficar bonita, demora menos tempo pra ficar pronta, enquanto que a crônica e o conto demandam mais trabalho, mas, de um modo geral, ficam mais fluidos, por conta de se inspirarem no cotidiano, na oralidade e coisa e tal. Comentou também que a boa crônica é aquela que lemos em voz alta sem que nos falte o ar. Foi ela dizer isso que chegamos na estação e, em menos de cinco minutos, numa sala enorme dentro de um prédio bem antigo, desses onde os móveis têm cheiro de Rua do Lavradio. As pessoas estavam sentadas em um grande círculo, esquema primeiro dia de aula e, quando pediram pra ela se apresentar, saí pra dar uma volta, que não gosto de ouvir a mesma história várias vezes, afinal, figurinha repetida, além de não completar álbum, costuma pouco valer em partidas de bafo, concorda? Pois bem, nessa volta, me pus a andar. O fato é que andei tanto, mas tanto, que acabei parando numa sala com uns rádios da época em que vovó era mocinha. Muito bacana mesmo. Eu fiquei tão empolgada, mas tão empolgada, que liguei o aparelho mais bonito de todos só pra ver se ele ainda funcionava e qual não foi minha surpresa ao ver que ele não só funcionava perfeitamente como também tocava um bolero justo naquela hora. Achei que estava sonhando e, portanto, pedi pruma faxineira que passava no corredor me beliscar. Ela me olhou de um jeito estranho e na hora me lembrei daquela doença que um dos sintomas é a perda da sensibilidade da pele, como é mesmo o nome? Hoje em dia o troço até tem cura, mas antigamente era um horror, os doentes eram jogados em sanatórios, que a coisa era contagiosa, meu deus, como se chama mesmo o raio dessa moléstia? Bem, acho que é o caso de procurar na wikipedia, que minha memória não chega a ser uma Brastemp e isso, definitivamente, não importa agora, até mesmo porque a dona, apesar de ter me achando doida, não foi louca o suficiente de me perguntar porque eu tava pedindo aquilo, deve ter pensado que eu era artista e foi logo me beliscando sem cerimônia. Como doeu muito, vi que não estava sonhando e foi exatamente nessa hora que pensei em você, Astor, porque bolero é coisa de quem vê com os dedos e escreve com a boca. Mas o melhor ainda estava por vir. Depois desse passeio incrível, voltei pra tal da reunião, que parecia estar acabando, pois as pessoas estavam todas de pé, com aquele jeito de pendurar a bolsa que só quem tá a fim de ir embora pendura. Fiquei ali no meu canto esperando minha autora quando vejo uma moça vindo na minha direção. Cheguei a olhar pra trás pra ver se era mesmo comigo e de repente ela veio e disse: "Você é a Jupira, não é?" "Sim, sou, você me conhece?" "Claro! Você e o Astor fazem parte da minha vida já. " "Mesmo?" "Sim." "Jura?" "Olha, eu sou budista, budistas não costumam jurar, mas, se for importante pra você, posso até jurar, Jupira, que você é muito divertida." "Quê isso..." "Posso te pedir uma coisa?" (Claro que podia) "Dedica sua fala um dia pra mim, que nem você fez com a Linda, aquela leitora que dá em cima do Astor?" "Lógico." "Tá bem, agora preciso ir, foi um prazer." "Espera, qual seu nome?" "Não precisa citar meu nome, não, fala só que é pra leitora budista, que eu vou saber que é comigo." É, Astor, Andy Wharol tinha mesmo razão: se nada mais der certo, pelo tivemos nossos quinze segundos de fama.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Memórias, miríades...

Sua avó parece ter sido incrível, hein, Jupira? As avós sempre deixam essas marcas de amor por onde passam. Eu que não conheci minha avó... Como já disse, só tenho minha tia, que já está se tornando uma avó. Meio biruta-meio amorosa, pode crer. Eu voltei da Ilha, mas ela ficou. A força dela está como se tivesse alcançado dez pontos naquela escala que mede tremores de terra, sabe qual é? Que tem um nome difícil de escrever. Você me entendeu. Ela tinha muitos tremores. Febres. Ainda bem que o caríssimo jovem que lhe rende paixão gosta de rumbas e salsas, porque sem essas, minha tia não vive. Ela sempre amou Cuba por demais. Minha tia me criou desde muito pequeno, porque minha mãe virou uma grandiosa águia e partiu com uma cobra enrolada no pescoço (eu tenho mania dessa imagem). Não sei se eu seria a cobra ou a águia. Talvez o vão entre as duas. Ou o perigo ameaçador que uma causa à outra. E a pulsão de continuar voando.

Um dia conheci mamãe. Linda. Exuberante. Deslumbrante mesmo. Eu não era mais menino, mas minha tia me soltou naquele lugar que até hoje não sei onde fica – porque eu fui com uma venda nos olhos – pra conhecer a mulher que me pariu. Ela não sabia que eu era seu filho, mas me serviu um belo café da manhã no seu restaurante. Ela tinha uma cobra tatuada no ombro direito. Usava um vestido vermelho com alças finas, desses que hoje não se vê mais. Bem, eu nunca mais vi esse vestido. Esvoaçante. Com um laço discreto na cintura. Então eu estava ali... frente a desvendar todo o mistério que envolvia a figura de minha mãe. Mas preferi tomar meu café e ir embora. Eu comecei a respeitar meus mistérios, sabe? É melhor que todos os mistérios fiquem como mistérios. Se eu deslindasse a aura de mamãe, eu poderia transformar tudo em míseras migalhas de pão no prato. Ela parecia bem feliz ali naquele lugar que eu não sei te descrever. Recoloquei minha confortável venda e segui em frente. Mãe é quem cria. Mãe é aquela que sabe e não aquela que procura saber. Bastou-me ver que a mulher que me pôs no mundo era incrível, deslumbrante.

Voltamos eu e minha tia em sua velha brasília azul-rei. Depois de uma longa estrada e muitas salsas no caminho, paramos pra almoçar um belo pato com laranja. Eu que tinha pavor de comer pato desde tempos memoráveis. Lembro-me que quando vi meu primeiro pato assado na mesa, feito por titia, eu chorei. Mas veja isso. Veja bem as pessoas que sabem fazem isso que vou lhe dizer: minha tia escondeu o pato, não sem antes me dizer que o havia jogado no lixo. E pro jantar fez bolinhos. Dizendo que eram coxinhas de galinha. Devorei o pato como uma bela galinha.

Bem, almoçamos o pato em um restaurante daquela estrada cheia de poeira. Dali partimos de volta ao nosso mundo naquela velha vila no meio do nosso vale preferido. Naquele dia nós ouvimos todas as rumbas que podíamos. Dançamos como sempre. E bebemos nosso vinho seco. E mais uma vez, ao final da madrugada, minha tia berrava seus boleros abraçada com a imagem de São Benedito. E eu ria.

Eram quase seis horas da manhã, na marambaia _ou seria na Guanabara?_ quando o vermelhusco batom riscou os lábios grossos antes de minha tia ir para o trabalho. Ela foi. E eu padeci no sono da manhã.

domingo, 15 de agosto de 2010

Nanã

Acho que nunca te falei de minha avó materna, né, Astor? Na verdade não a conheci porque quando ela morreu eu tinha só seis meses de vida e nem os esfíncteres controlava, que dirá conhecer alguém na acepção ampla da palavra. Ainda assim, me miro nela, que era uma pessoa feliz, mas feliz de doer, sabe assim? Pra se ter uma ideia, ela, por exemplo, nunca fez uma viagem ao exterior, dessas que a gente ostenta no facebook, na sala de estar e nas vernissages cool. Acho que o mais longe que a bichinha chegou foi Florianópolis e, ainda assim, nem pôde curtir as praias, já que tinha ido lá mais pra ajudar mamãe e naturalmente passou boa parte do tempo cuidando dos meus irmãos mais velhos que, apesar de já estarem grandinhos, ainda precisavam daquela supervisão no quesito dignidade, afinal, o cu é a última parte que aprendemos a limpar direito, não é mesmo? Pois bem, o que meus irmãos contam é que vovó, fosse em Floripa, fosse no Rio, entre uma limpada de bunda e um "não sobe aí menino que você pode cair", estava invariavelmente irradiando alegria. Eu sei que é difícil ouvir uma coisa dessas sem se perguntar lá no fundo se ela não tomava uma biritinha, um antidepressivo ou um veneninho antimonotonia qualquer, mas, pasme, ela era mais careta do que todas essas evangélicas ex-viciadas que aparecem por aí dizendo que encontraram Jesus. Acredito que lá de cima ela reprove o fato deu tomar remédio pros nervos de forma tão sistemática, mas ela foi ela e eu sou eu e, nessa vida, definitivamente, vale o que acontece e não o que acharíamos ótimo que tivesse acontecido. Exatamente por isso não me sai da cabeça o porquê de tão incomensurável alegria. Penso, penso, matuto, faço pastinha de neurônio e não encontro uma explicação plausível. Tudo bem que ela era bem casada e provavelmente bem-comida, mas isso não é o suficiente pra justificar tamanho júbilo. Ou é? Taí uma pergunta que não sei responder, afinal, os casamentos da nossa geração não são a mesma coisa que os daquela época. Hoje em dia, enquanto ainda se está pagando as prestações da festança e da lua-de-mel, o casal tão feliz das fotos e do vídeo já está amigavelmente afastando as escovas de dente, deixando lençóis saudosos e liberando novos solteiros no mercado que, estatisticamente, ou se casam de novo quase que imediatamente, ou ficam um tanto quanto perdidos entre o medo de uma nova relação e o desejo de estar perto de uma pessoa arrebatadoramente interessante que de novo possa trazer aquele cheiro de casa de campo em plena selva de pedra. O fato é que queria muito poder conversar tantas coisas com vovó que nem te conto. Às vezes me pego com uma inveja danada das minhas amigas quando elas começam com "minha avó isso, minha avó aquilo" e eu sem ter o que dizer, pois, pra piorar, meu pai é órfão e, portanto, o que me restou foi conversar com minhas tias-avós, que, apesar de serem muitas, sabem voar. Pela memória delas, sei como foi a infância de vovó, como ela começou a trabalhar escondida do pai dela, como conheceu vovô, como se arrumava em dez minutos, como ria alto, como não ligava quando chovia, como amava dar o primeiro banho em cada criança que nascia na família, como tinha uma pele tão incrível que parecia que nunca iria envelhecer e como fazia um arroz com agrião que até hoje ninguém consegue imitar. O que minhas tias-avós não sabem é que em domingos assim como esse de hoje, meio chuvosos, em que o desejo de ficar embaixo do edredon é mais forte até do que o de comer chocolate, tenho sempre a impressão de que vovó olha por mim mais de perto do que de costume.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Sou brasileiro imperador!

Arrumei um emprego em um bar onde o pessoal é animado pacas, Jupira. Eu andava meio durango kid e resolvi ganhar uns trocados. Nesse meio tempo, apareceu a Celeste que cismou que queria casar comigo, mas na verdade ela só queria mesmo é um ombro pra chorar. A gente já conversou sobre isso, não é? Essa mania que esse pessoal do nosso tempo tem de fazer do amor uma terapia, ou fazer do amor um terapeuta. Você me entendeu. Mas isso não interessa muito porque o que eu precisava mesmo era de uns trocados depois que eu voltei de Salvador. Bom, arranjei o trampo nesse bar. Dou uma chegada lá dois dias na semana, rola um samba num dia, rola uma salsa no outro além de muitas surpresas nessa vida de meu deus. E a surpresa da hora foi a seguinte: minha tia passou por lá sem me avisar. E eu nem sabia se ela ainda existia. E isso já faz mais de anos. Achei até que tinha morrido. Mas não. Tá numa sorte que até deus duvida. Fiquei pasmo. Acho que não te falei dessa minha tia, não é? Nós chegamos a morar juntos. Na verdade ela criou o adolescente que eu fui e que eu não me lembro mais... enfim. Eu tava servindo o povo e dançando, como sempre, e tomando umas sem pena, quando me vi nos braços da minha tia descambando o: “quero viver como passarinho / cantar, voar sem direção...” sabe essa? Não via minha tia há tempos. Ela uma vez falou pra mim mais ou menos isso que te falaram de uma oitava acima. E logo depois ela se escafedeu. E olha que a oitava dela nunca foi muito lá embaixo, não. A danada nem envelheceu muito. Só tá usando uns óculos mais fortes e continua bebum. Ela procurava por essa vida as salsas que ela tanto gosta, mas foi parar no bar no dia que rolava o samba. Minha tia dizia que eu só prestava no dia que eu chegava mais cedo em casa e bebia conhaque com ela, que eu era aquele amigo que só tinha dinheiro pra bebidinha, e que se ela precisasse de um remédio eu não me pronunciar. Um coisa essa minha tia. Esse é o jeitão dela. Mas ela me amava, podes crer. Sempre me amou. Mas essa mania de salsa e rumba, cuba libre e um bolero com umas reluzentes lágrimas no fim da noite me enchia, vou te contar. Apesar que eu adoro bolero. Bom, o negócio foi que quando eu abri meus olhos [porque tenho mesmo a mania de dançar de olhos meio fechados], minha tia me olhava com cara de quem via a colheita se deteriorar. ASSSSTOR! Ai, tia, a senhora por aqui? Como me encontrou? Primeiro o cheirinho, me encheu a paciência porque eu tava fumando, depois olhou meus dentes e me mostrou os dela. Depois chorou. Fez um mimimi que só as tias fazem nos nossos ombros e me mostrou, por fim, o senhor de toda a boa sorte dela: um simpático grande homem de vinte e três anos dono de uma ilha lá perto de Angra dos Reis. Ah, Jupira...foi instantânea a alegria. Como foi bom saber de titia. Mas daí acho que apaguei. Desmaiei. Porque acordei com a Celeste esfregando meus pulsos. Recobrei rápido a razão e adivinhei o que minha tia havia feito [sempre ela deu um jeito de esbofetear minhas namoradas], mas não sei se fez desta vez. Celeste, nesse ponto, é um túmulo, daquelas que sofre calada, sabe? Fui lavar o rosto e a cabeça na pia do banheiro. Coloquei a mão no bolso e encontrei um belo cheque de uma grana boa. Fiquei cantando o samba até o dia clarear. Depois fui embora. Agora vou ver se conheço a ilha do namorado de titia. E isso tem que ser rápido, Jupira, porque se mal me lembro, o rapagão, novo como ele só, tá meio... assim, assim... sabe? Não funciona lá muito bem. Você me entende, né? E minha tia [como todas as mulheres da minha família] é quase uma lava vulcânica viva. Jupira, não sei por que, mas tou me sentindo tão brasileiro com esse cheque que ganhei de presente...Será que é decepção com os candidatos presidenciáveis que temos em nossa frente? Ih, grilei!

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Ex-cêntrica

A falta que esse seu excesso faz em mim é absolutamente igual a quando eu era menina e minha mãe se atrasava pra me buscar na escola e eu ficava à mercê das faxineiras com seus grampos e conversas sobre o preço do patinho e do lagarto. Olhando pra esse seu jeito de ficar perdido, vejo um homem que adoraria ser devorado por bacantes anoréxicas, dessas que ladram mas não mordem, falam mas não dizem, ameaçam mas não se impõem. Pensando bem, acho que também tenho fome. E sede. E apetite. E vontade de sair nua montada numa Harley-Davidson, como uma Lady Godiva from hell, pronta pra sentir o vento bater em locais que não tomam sol. Pensando bem mesmo, não tenho tudo que amo, mas nem por isso caio na asneira de amar tudo que tenho. Deus me livre uma coisa dessas. Imagina só no médico: “-Dona Jupira, a senhora está com falta de lítio”. “-Poxa, doutor, que ótimo!” “-Eu não diria o mesmo, afinal, você terá de tomar remédio pro resto da vida”. “-Não tem problema, estou feliz, o transtorno bipolar é meu e, portanto, digno do meu amor”. Te digo uma coisa, Astor, eu posso ser tudo nessa vida, mas nunca, nunca, serei uma pessoa parada com mil palavras, refém da sintática e da concordância. Imagina, respeito é bom e eu gosto. Comigo, semântica tem que ser subordinada, que nesse mundo de Deus me livre manda quem pode e obedece quem tem juízo. Falando nisso, hoje saí do sério e liguei pra todo mundo com quem briguei nos últimos dois anos. Nem preciso dizer que foram horas no telefone e só não estou totalmente arrependida porque na última ligação ouvi a coisa mais interessante que uma pessoa munida de alguma sanidade pode ouvir, que foi algo mais ou menos assim: “Jupira, só paramos de nos falar porque você sempre esteve uma oitava acima, o que não me permitiu ser concerto pra sua sinfonia”. Fala sério, não é lindo isso? Nem esse pessoal que escreve roteiro pra cinema seria capaz de imaginar uma fala dessas, vai. Fiquei me achando na hora, tô me achando agora e acho que será assim até amanhã de manhã, quando, depois de pedir um descafeinado só pra mim, voltarei à realidade de quem toma remédio pros nervos e não sabe com quantos adjetivos se faz uma pessoa inteira. Nem com quantas vagas lembranças se constrói uma memória.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Réplica para uma liberdade qualquer

Eu estava meio perdido por esse mundão aí. Sabe se perder? Não se perder pra se encontrar. Perder-se mesmo. Até vento bom ventar e te carregar. Uma folha que vira rápida. Uma palavra da doida que te leva pra baixo de um bonde. A sacola da dona que estoura tomates. A mão do guarda que não aponta direito. A asa do condor que se estira parada. Perder assim. Mil agulhas e uma linha. Perder esse. Sabe pessoa com gotas de suor, lágrima, sal do mar na pele, unhas, todas as unhas? Uma pessoa parada com mil palavras, o mundo inteiro de uma pessoa, um campo de batalha de uma pessoa, um ser de uma pessoa, dois seres de uma pessoa, três seres de duas pessoas, amor de cão, rato no muro, tijolo aberto, buraco de fechadura, quarto de casal, de empregada, computador de menino, música toada, sinuca de bico, peixe de pele, escama de pé. Sabe perder-se no domingo? Inferno astral, segundo sol, era de aquário, história de uma mesa, de uma cama, de um copo. Sabe cadeira? Perder-se no sentar, cadeira vazia, borracha queimada, tempo de cheiro. Sabe Cheiro? Perfume quebrado, quarto mofado, poeira de canto, periquito branco, madeira de banco, comida de branco, colher de chá, de sopa, faca de ponta, de gume, de dois. Sabe um Estado? Bahia, Recife, Aracajú, Cajuína, Tindorerê, Tocantins? Sabe fruta doce? Comi uma azeda. Sabe café preto? Nunca vi. Sabe fruta pão? Passo. Esqueci de me vestir, Jupira. Acordei em Setembro. Farinhei tempo. Passeei no arame. Comi salada de veias. Perdi veias, vasos, varizes.

Vi tudo isso que te digo escrito numa placa quando eu ia pra próxima parada.

Eu estava dormindo quando a explosão se deu.

Escrevi tudo isso quando li uma mensagem no meu celular, que dizia assim pra mim: te vi agora.

Eu ia lá e resolvi ficar. Não sei que lugar é esse que estou, mas acho que conheço. Parece uma caixa. Um cinzeiro. Um hotel cinco estrelas. Parece a rua Voltuntários da Pátria. Não sei que lugar é esse. Mas acho que já estive aqui. Mas tudo bem. Eu volto já. Não demoro. A porta está aberta. Tou sem telefone, a bateria acabou e tou sem skype. E não reclamo.