quarta-feira, 30 de junho de 2010

Antes de dormir ou nunca mais dormir

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Eu mal havia chegado da casa daqueles meus amigos que moram em Vargem grande, como te falei, e encontrei uma grande amiga de muito tempo na feira aqui da minha rua. Não que eu tenha o costume de ir às feiras livres – apesar que é algo por demais agradável. Mas também não tinha jeito já que abro o portão e dou de cara com aquelas cores-alhures-raízes. E não fui pra comprar nada. Fui comer um pastel e provar as laranjas. Eu sempre fazia isso quando era novinho. E caldo de cana. Essa minha amiga estava puxando seu carrinho abarrotado de verduras, porque ela não come carne e eu a reconheci pelas sandálias. Na verdade pelo pé. Eu conhecia aquele pé – aquele pé lá e pé cá, sabe? Aquela coisa rápida, que você não alcança. Essa minha amiga é assim. Voa no vento. Depois de choros sem velas e laranja ontem e laranja amanhã, ela se apressou. Fui atrás. Ela passou em casa, deixou as coisas todas arrumadas pra sua mãe e se mandou pra Cachoeira de São Félix, Bahia. Fui atrás. A viagem foi rápida. Fomos de avião. Não deu tempo de ela me explicar muita coisa sobre o trabalho que ela vem fazendo em Iguape, no interior de Cachoeira, há algum tempo. Ela queria me explicar, mas eu estava atrasando tudo. Eu não tinha passagem comprada, nem mala arrumada. Só tinha o sonho de conhecer Cachoeira e o Rio Paraguaçu, a Pedra da Baleia e aquela ponte que dividiu segredos algum dia. No avião eu fiquei tenso. Não com a altura. Mas com os gases. Até hoje ninguém me disse o porquê de tantos gases me assolando cada vez que estou em um avião. Mas esquece isso. Enfim. Fiquei mudo. Ela me achou tenso. Ela estava cansada. Eu também. Chegamos a Salvador, passamos em Santo Amaro e fomos pra Iguape. (Não vi Pedra da Baleia, não vi Rio Paraguaçú e nem passei pela ponte). De Cachoeira fomos pra esse lugarejo incrível chamado Iguape. O trabalho que essa minha amiga está fazendo é em uma comunidade quilombola no meio de um mundo – que é o nosso, mas na verdade a gente não é dono nem da nossa esquina, quanto mais. Mas eles, da comunidade, são donos. Pode crer. Conheci a garotada que veio nos receber na estreita estrada de terra batida. Depois conheci a Mãe. Mãe era a líder do lugar. E educava e criava todo mundo. Mãe havia sonhado com uma mulher que chegava à comunidade pra fazer um trabalho com teatro. Ela disse isso no primeiro dia que esteve com minha amiga. Depois tudo foi se deslindando. As fronteiras foram se quebrando – não com minha amiga, que parece que foi fluido o contato, mas sim com as elucubrações, os desejos de expansão daqueles seres que acumulam fortemente, durante a vida, um saber empírico que me arrebata. O trabalho corporal começou embaixo de uma grande árvore e depois eu fiquei sabendo que aquele era o último dia do trabalho e eles fariam a apresentação final da oficina que durou mais de mês. Conversei um pouco com aquelas pessoas e foi tão bom ouvi-los porque... não existia naqueles falares nenhum carrego de nossa formalidade daqui. Só existia saber. Cada palavra dita parecia bem clara, mastigada, com bens caríssimos à vida. Aqueles pés pisavam tão bem naquela terra. Aquele lugarejo estava num meio mundo de um mundo que dava pra ver... não acabava fácil, não. Meu deus, era até bem fácil criar asas e voar naquele céu.

Bem, enfim minha amiga me explicou qual foi o ponto de partida desse trabalho que ela chamou de “Memória: carne Viva”. A inspiração foi o livro “Antes de Nascer o Mundo” do escritor Angolano, de Moçambique, Mia Couto. Dizem que ele não é nem um pouco afeito à rotina de um escritor profissional. Esse Livro do Mia conta a história de um pai – viúvo – que leva seus filhos pra um lugar remoto. O pai avisa aos filhos que o mundo havia acabado e que eles eram os últimos sobreviventes. É bacana que a narrativa é feita sob a ótica de uma criança. Achei incrível a sacada dessa minha amiga grande artista. Aquele lugar, pelo que ela contava, era o próprio livro. Sabe esses lugares praticamente virgens? Sabe terra virgem, boa?, que você joga uma semetinha de nada e cresce um arvoredo? Parecia isso. O trabalho teatral que ela desenvolveu ali com aquelas pessoas e a comunicação travada, explorada e o pensar sobre tudo o que necessitavam, foi extremamente fino. Ela sempre me diz: “preto, esse trabalho é a minha cachaça”.

A tarde passou depressa e cada acontecimento era tão vivo quanto a alegria que só ia aumentando quanto mais a hora da apresentação chegava.

Quando aquelas crianças - e senhoras também com seus quase setenta anos - começaram a peça e a falar os textos, foi comoção profunda.

Um menino aprendeu a andar com perna de pau assim que subiu nelas. Ele era um gigante, diziam.

Os ensaios aconteceram sempre em um terreiro.

Na hora de minha amiga ir embora, foi um chororô impagável. Pra tudo eles cantavam. Sempre que minha amiga chegava, eles cantavam. Cantavam pra o sol que se punha, cantavam pras partidas. Cantavam pra quem não ia, pra quem via. Cantavam pra dor, pras fronteiras. Cantavam pela paz.

Se na ida eu não conseguia falar nada, na volta foi assim mesmo. Mas não falava porque não tinha nada pra falar. Eu estava em paz comigo e com o avião que voava alto.

Eu queria ser o contador de histórias daquela comunidade pra viver com aqueles personagens. Dormir com eles, cantar, dançar. Viver um tempo com eles e ser insone o tempo que fosse preciso. O teatro - a arte - fala mais forte quando é assim. Sem firula. Sem “comer zinco e arrotar semâncio. E sem passar roxura”, como dizia Dona Luíza, lá de Cachoeira.

5 comentários:

  1. ...palavras e silêncio que jamais se encontrarão...

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  2. que delícia ler este texto, viva!

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  3. pois então, será o silêncio uma palavra-eco?

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  4. seja bem vinda, "o que é semiótica?". a semiologia é um troço que acho incrível. quase um mistério. assim como a vida das formigas, ou das abelhas... rs. volte sempre!

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  5. Astor, aquilo que disse lá em cima é um trecho de uma música do Zeca Baleiro que adoro. Mas, licenças poéticas à parte, tenho a impressão de que as palavras e o silêncio são paralelas que se encontrarão no infinito.

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