segunda-feira, 28 de junho de 2010

Savana onírica

Meus sonhos costumam ser meio Salvador Dali: as pessoas têm gavetas, os relógios escorrem e eu nado no ar. Comento isso com meu terapeuta e ele diz que é muito bom sonhar que se está em movimento, indica mobilidade na vida. Eu aceito, né, Astor, tô pagando. Afinal, quem mais ia pensar num troço desse? Quem mais ia aguentar ouvir sobre meus sonhos, sejam os que tenho dormindo, seja os que tenho acordada? Pelo menos pra isso essa droga de capitalismo serve, pra gente pagar pela atenção alheia. Aliás, se eu pudesse, alugava alguém pra ir comigo a casamentos e chás de bebês, só pra não ter que ficar explicando o porquê de não ser casada. Cansei de mentir, sabe? De dizer que não tenho a obrigação de me envolver com quem quer que seja só pra ficar com o anelar esquerdo pesado e de dizer que acho esse negócio de amor uma loteria danada: ótima pra quem ganha, mas frustrante pra quem não logra êxito. Porque, venhamos e convenhamos, a pessoa pode passar uma vida inteira apostando e nunca ter seu número sorteado, não é mesmo? No último casamento que fui, por estar desacompanhada, acabei inventando que tinha problema nas trompas de falópio, porque, hoje em dia, mesmo sem marido, as pessoas insistem em achar que você tem que ser mãe, que é só arrumar um doador e, daí, depois que esse assunto começa, a coisa vai ganhando proporções assustadoras, que vão desde a idéia de que negar a maternidade é contra a natureza da mulher até a cotação das fraldas Pampers e Turma da Mônica. Confesso que depois de tanta baboseira fico com uma vontade danada de pedir à cidadã (que esse tipo de intromissão costuma vir quase sempre de mulheres) pra se meter com a própria vida e me deixar em paz, já que sou do tempo que filho era coisa pra quem tinha um homem com quem dividir a responsabilidade. Mas, por ultimamente andar tão calma e lânguida, só queria mesmo era alugar uma companhia pra essas ocasiões. Uma amiga do pilates inclusive me indicou uma agência, mas sempre fico achando que vai vir alguém falando ou um “pra mim fazer” ou um “posso estar tentando estar chamando um táxi pra gente” e isso acaba com o estoque de colágeno que ainda me resta. Pensando bem, não sei porque fui falar disso, não era o que realmente tinha a intenção de te contar. Liga não, sempre quando estou a uns três dias da menstruação, dou pra ficar assim, mais digressiva que professores de Filosofia depois da terceira taça de vinho tinto. O que queria te dizer é que esse bom humor de hoje é por conta da peça de Teatro que assisti ontem. Sendo bem sincera, só fui porque li no jornal uma crítica super elogiosa daquela senhora que não gosta de quase nada, sabe? Então, ela adorou a peça de uma tal maneira que fiquei curiosa. E não é que ela tinha razão e o espetáculo era realmente pungente? Resumindo, é a história de um casal onde a mulher tem problema de perda de memória recente e o marido, um escritor meio contemporâneo demais, acaba sendo seduzido pela vizinha, uma maquiadora muito da vagabunda que se aproveita da situação de fragilidade da outra. A hora que eu mais gostei foi quando a desmemoriada disse que ela até podia se esquecer dos fatos, mas que, ainda assim, os reconhecia. Bacana, né? Ah, a peça se chama Savana Glacial, que, coincidentemente, é o nome de um dos esmaltes da piranha da maquiadora. Desculpe falar assim da moça, Astor, mas acho que a pessoa seduzir o homem de uma sequelada é tão covarde quanto roubar moeda de cego na porta da igreja, né, não? Como é que a outra ia poder se vingar? Enfim, ontem foi o último dia da temporada lá no Planetário, mas, se você quiser, eles voltam em cartaz agora em julho lá naquele teatro na saída do Metrô da Praça Cardeal Arco Verde, aquele que tem nome de um dramaturgo que apresentava um programa de entrevistas na Tv Globo há muito tempo atrás, sabe? Bem, acho que não vou me lembrar do nome do homem, mas, de todo modo, esse é o único Teatro nessa praça, portanto, não será difícil de achar.
Aliás, guardei o ticket pra te mostrar. Desde menina tenho essa mania de colecionar ingressos: meu acervo tem entrada de Rock’n Rio, de show do Roberto Carlos e de vários jogos do Maraca. Pra você ter uma ideia, até aquelas pulseiras de área vip eu guardo. Tem gente que acha cafona, mas eu nem ligo. Pra mim, cafona é quem ainda se preocupa em combinar a cor do sapato com a da bolsa. Mas o que queria mesmo te dizer é que essa noite, depois dessa peça, pela primeira vez na vida, tive um sonho diferente, meio Polansky, sabe assim? Não sei quanto a você, mas adoro a atmosfera dos filmes dele, uma coisa claustrofóbica, movimento zero, fico sempre tensa. Pois bem, sonhei que tava num barco com um homem (que parecia ser meu marido) e mais um rapaz, que nem naquele filme dele, qual o nome mesmo? Ai, meu Deus, não consigo me lembrar de mais nada. Será que tô ficando com o mesmo problema da moça da peça? Acho que vou ligar pro meu médico e marcar uma consulta. Mas antes vou ao mercado comprar peixe, que dizem que é ótimo pra memória.
Outra hora nos falamos.

2 comentários:

  1. valeu jupira, muito bom!

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  2. Valeu, Guilherme, olha, a peça já tá em cartaz, apareça no Gláucio Gil, você não vai se arrepender, te garanto.

    Obrigada pela visita e volte logo.

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