domingo, 15 de agosto de 2010

Nanã

Acho que nunca te falei de minha avó materna, né, Astor? Na verdade não a conheci porque quando ela morreu eu tinha só seis meses de vida e nem os esfíncteres controlava, que dirá conhecer alguém na acepção ampla da palavra. Ainda assim, me miro nela, que era uma pessoa feliz, mas feliz de doer, sabe assim? Pra se ter uma ideia, ela, por exemplo, nunca fez uma viagem ao exterior, dessas que a gente ostenta no facebook, na sala de estar e nas vernissages cool. Acho que o mais longe que a bichinha chegou foi Florianópolis e, ainda assim, nem pôde curtir as praias, já que tinha ido lá mais pra ajudar mamãe e naturalmente passou boa parte do tempo cuidando dos meus irmãos mais velhos que, apesar de já estarem grandinhos, ainda precisavam daquela supervisão no quesito dignidade, afinal, o cu é a última parte que aprendemos a limpar direito, não é mesmo? Pois bem, o que meus irmãos contam é que vovó, fosse em Floripa, fosse no Rio, entre uma limpada de bunda e um "não sobe aí menino que você pode cair", estava invariavelmente irradiando alegria. Eu sei que é difícil ouvir uma coisa dessas sem se perguntar lá no fundo se ela não tomava uma biritinha, um antidepressivo ou um veneninho antimonotonia qualquer, mas, pasme, ela era mais careta do que todas essas evangélicas ex-viciadas que aparecem por aí dizendo que encontraram Jesus. Acredito que lá de cima ela reprove o fato deu tomar remédio pros nervos de forma tão sistemática, mas ela foi ela e eu sou eu e, nessa vida, definitivamente, vale o que acontece e não o que acharíamos ótimo que tivesse acontecido. Exatamente por isso não me sai da cabeça o porquê de tão incomensurável alegria. Penso, penso, matuto, faço pastinha de neurônio e não encontro uma explicação plausível. Tudo bem que ela era bem casada e provavelmente bem-comida, mas isso não é o suficiente pra justificar tamanho júbilo. Ou é? Taí uma pergunta que não sei responder, afinal, os casamentos da nossa geração não são a mesma coisa que os daquela época. Hoje em dia, enquanto ainda se está pagando as prestações da festança e da lua-de-mel, o casal tão feliz das fotos e do vídeo já está amigavelmente afastando as escovas de dente, deixando lençóis saudosos e liberando novos solteiros no mercado que, estatisticamente, ou se casam de novo quase que imediatamente, ou ficam um tanto quanto perdidos entre o medo de uma nova relação e o desejo de estar perto de uma pessoa arrebatadoramente interessante que de novo possa trazer aquele cheiro de casa de campo em plena selva de pedra. O fato é que queria muito poder conversar tantas coisas com vovó que nem te conto. Às vezes me pego com uma inveja danada das minhas amigas quando elas começam com "minha avó isso, minha avó aquilo" e eu sem ter o que dizer, pois, pra piorar, meu pai é órfão e, portanto, o que me restou foi conversar com minhas tias-avós, que, apesar de serem muitas, sabem voar. Pela memória delas, sei como foi a infância de vovó, como ela começou a trabalhar escondida do pai dela, como conheceu vovô, como se arrumava em dez minutos, como ria alto, como não ligava quando chovia, como amava dar o primeiro banho em cada criança que nascia na família, como tinha uma pele tão incrível que parecia que nunca iria envelhecer e como fazia um arroz com agrião que até hoje ninguém consegue imitar. O que minhas tias-avós não sabem é que em domingos assim como esse de hoje, meio chuvosos, em que o desejo de ficar embaixo do edredon é mais forte até do que o de comer chocolate, tenho sempre a impressão de que vovó olha por mim mais de perto do que de costume.

14 comentários:

  1. Taí, Jupira, você até que tá evoluindo...

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  2. Nossa, quantas visitas...

    Ana Cláudia, obrigada, acho que você é amiga da minha autora, confere?

    Efa, que nome interessante, agradeço o elogio e a visita, a primeira vez a gente nunca esquece, não é mesmo?

    Rodrigo, adoro quando você me elogia, sabe como é, um autor falando assim com uma personagem é sempre uma coisa importante, fico lisonjeada.

    Juju, que nome mimoso, Astor às vezes me chama assim. É sua primeira visita por aqui, não é, meu bem? Sinta-se em casa, volte sempre e divulgue o trabalho da gente por aí (algo me diz que você é da área de produção, acertei?)

    Linda, um elogio desses vindo de uma leitora tão exigente como você faz essa segunda-feira cinza ganhar outras matizes...


    Beijos em todos,

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  3. Sou avó e perece que meus netos me curtem. Ou estarei enganada, fingirão eles? Mas n ão fui neta, pois minhas avós foram embora antes de eu nascer. Assim, aqui tens uma avó carente de avó. Coisa mais estranha...mas é a pura verdade...e obrigada pelo texto, lindíssimo, atrevido, bem dito e bendito. Abraços

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  4. Lembrei sesse curta aqui "Eu conheci meu avô", ao ler essas belas palavras
    http://www.youtube.com/watch?v=4gFeXznhwEk

    Beija

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  5. Nossa, quantas visitas...(2)

    Ruth, que fofo seu depoimento, me emocionei, fora que adorei o "bem dito e bendito". Pode falar, você é escritora. Acertei?

    Marina, fui lá no seu perfil e vi que você dá aulas de yoga, mas sua foto tá debaixo d'água, ou seja, você é do tipo eclética? Adoro.

    C.C., chorei vendo esse filme, que delícia o aconchego das crianças com o vô, esse com certeza morreu feliz, porque cariho é uma das únicas coisas que cabe em qualquer bagagem, não é mesmo?

    Um beijo no coração docês,

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  6. Jupira, não sou escritora. Mas escrevo...às vezes só para mim, outras deixo alguém ler. O engraçada é que, para que eu faça um texto, tenho de sentir uma certa ""nostalgia"" um momento. Sou avó, como já disse, casada, marido doente a uma década e escrever me alivia muito das tensões de cuidadora. Tenho um blog, meio abandonado, onde conto a história de minha avó materna. Vou dar continuidade, pois a família está me cobrando. Mas sem pretensões literárias. Teu blog me fez muito bem. Um beijo.

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  7. jupira vc tem fcbk? no mesmo dia q li seu post, botei no meu face uma foto da casa da minha vó, cara hj reparei q nao foi coincidencia...foi a imagem pelo que senti ao ler seu texto, bjss

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  8. Rodrigo, você falando assim eu até umedeço (ops, enrubesço).

    Ruth, que coisa interessante é a internet, não é mesmo? Em que outro lugar do mundo poderíamos ter nos encontrado e estabelecido essa troca tão bacana? Fico muito feliz que este blog lhe faça bem, mas preciso te dizer que ele não é só meu, é do Astor de La Cruz também. Nós vivemos a trocar cartas, de uma forma romântica, pueril. Gostaria de conhecer seu blog. Caso fique envergonhada de divulgá-lo aqui, mande um email pro docejupira@gmail.com
    Boa sorte pra você e lembre-se: nessa vida, ou cuidamos ou somos cuidados, faz parte do ofício de sermos humanos, demasiadamente humanos.

    Semiótica, eu não tenho facebook, e, como sabemos, coincidência é o nome que damos àquilo que não conseguimos explicar por A + B, não é mesmo? Pra mim, esse fenômeno da foto de sua avó está mais pra metafísica, sincornicidade e cadeia vibracional. Estamos já ligadas, posso daqui sentir os laços.

    Um grande beijo,

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