segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Para a leitora budista

Hoje minha autora me puxou pruma conversa. Confesso que me deu um arrepio na espinha, pensei que a coisa ia virar aquele papo mole que não acaba até a hora de alguém se aborrecer ou dizer que está tudo bem mesmo não estando, sabe como é? Eu acho que você sabe, você tem esse jeito de quem ri com o fígado, uiva pra lua e sonha em preto e branco, mas, voltando à vaca fria, eu disse um monte de verdades pra ela, que eu preciso de espaço e de tempo, como todo personagem que se preze. Falei também que gostava de atenção e de carinho, que sou dengosa, ora bolas. Devo ter feito um bico tão grande que ela resolveu me levar pruma reunião de trabalho. No caminho, dentro do vagão do metrô, ela me explicou que, dentro do processo criativo dela, a poesia, apesar de ser mais difícil de ficar bonita, demora menos tempo pra ficar pronta, enquanto que a crônica e o conto demandam mais trabalho, mas, de um modo geral, ficam mais fluidos, por conta de se inspirarem no cotidiano, na oralidade e coisa e tal. Comentou também que a boa crônica é aquela que lemos em voz alta sem que nos falte o ar. Foi ela dizer isso que chegamos na estação e, em menos de cinco minutos, numa sala enorme dentro de um prédio bem antigo, desses onde os móveis têm cheiro de Rua do Lavradio. As pessoas estavam sentadas em um grande círculo, esquema primeiro dia de aula e, quando pediram pra ela se apresentar, saí pra dar uma volta, que não gosto de ouvir a mesma história várias vezes, afinal, figurinha repetida, além de não completar álbum, costuma pouco valer em partidas de bafo, concorda? Pois bem, nessa volta, me pus a andar. O fato é que andei tanto, mas tanto, que acabei parando numa sala com uns rádios da época em que vovó era mocinha. Muito bacana mesmo. Eu fiquei tão empolgada, mas tão empolgada, que liguei o aparelho mais bonito de todos só pra ver se ele ainda funcionava e qual não foi minha surpresa ao ver que ele não só funcionava perfeitamente como também tocava um bolero justo naquela hora. Achei que estava sonhando e, portanto, pedi pruma faxineira que passava no corredor me beliscar. Ela me olhou de um jeito estranho e na hora me lembrei daquela doença que um dos sintomas é a perda da sensibilidade da pele, como é mesmo o nome? Hoje em dia o troço até tem cura, mas antigamente era um horror, os doentes eram jogados em sanatórios, que a coisa era contagiosa, meu deus, como se chama mesmo o raio dessa moléstia? Bem, acho que é o caso de procurar na wikipedia, que minha memória não chega a ser uma Brastemp e isso, definitivamente, não importa agora, até mesmo porque a dona, apesar de ter me achando doida, não foi louca o suficiente de me perguntar porque eu tava pedindo aquilo, deve ter pensado que eu era artista e foi logo me beliscando sem cerimônia. Como doeu muito, vi que não estava sonhando e foi exatamente nessa hora que pensei em você, Astor, porque bolero é coisa de quem vê com os dedos e escreve com a boca. Mas o melhor ainda estava por vir. Depois desse passeio incrível, voltei pra tal da reunião, que parecia estar acabando, pois as pessoas estavam todas de pé, com aquele jeito de pendurar a bolsa que só quem tá a fim de ir embora pendura. Fiquei ali no meu canto esperando minha autora quando vejo uma moça vindo na minha direção. Cheguei a olhar pra trás pra ver se era mesmo comigo e de repente ela veio e disse: "Você é a Jupira, não é?" "Sim, sou, você me conhece?" "Claro! Você e o Astor fazem parte da minha vida já. " "Mesmo?" "Sim." "Jura?" "Olha, eu sou budista, budistas não costumam jurar, mas, se for importante pra você, posso até jurar, Jupira, que você é muito divertida." "Quê isso..." "Posso te pedir uma coisa?" (Claro que podia) "Dedica sua fala um dia pra mim, que nem você fez com a Linda, aquela leitora que dá em cima do Astor?" "Lógico." "Tá bem, agora preciso ir, foi um prazer." "Espera, qual seu nome?" "Não precisa citar meu nome, não, fala só que é pra leitora budista, que eu vou saber que é comigo." É, Astor, Andy Wharol tinha mesmo razão: se nada mais der certo, pelo tivemos nossos quinze segundos de fama.

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