terça-feira, 30 de novembro de 2010

Amor sem vintém

Falar de amor é como contar das bandalhas que se faz em plena luz do dia com sinal verde e sem vistoria, sem destino e sem possibilidade de regresso, numa bifurcação infinita, numa pracinha pequena e redonda. É como quando a noite cai, a temperatura fria [esfria] e o silêncio do nada faz ficar insone pra pensar nos delírios que se comete em nome do amor. É o mesmo que perceber o quanto a leve aguinha pesa nos olhos, por vezes muito mais que a onipresença mascarada do ego que não deixa que se assuma a falta de amor próprio e a expansão daninha da flor do ciúme. Ufa.

Ah, não adianta querer ir embora, Jupira. Pelos quatro cantos e em cada face santificada depois da hecatombe do amor, ainda há coexistências mil. Mas é gozado, mesmo seguindo por aí como fugitivo, depois de uma marota vacina, parece que ainda se transmite um vírus e se causa mal a qualquer um que se encontra pelo caminho...

No amor se descobre o quanto de bem e de mal se pode fazer. Até chá de veneno na cerveja dele depois de dizer que cão sem dono é bobo e cu sem dono é cu de bêbado. E depois sair com coragem madrugada afora procurando a casa que se deixou pra trás depois de dar duas facadas na mão do marido, depois de acordar o pobre coisificado que tentava dormir. Mulher é bicho ruim, ela diz. Correu e gritou pelas quatro e tantas daquelas horas que eram, pelas quatro esquinas daquela noite tórrida, pelas quatro meias estações que passaram duras em dois segundos pelos olhos e pelas sombras...e o marido correndo feito cego de sonos torpes pedindo perdão. Dói. Dói. Dói meu coração de boi. Um amor faz sofrer. E dois amores? Dois amores e quatro filhos te fazem é morrer de dar pensão, ô cara! Cuidado que a polícia vem aí. Em Mangueira se tem alvorada. Amor do alto, amor do chão, amor de morte, amor de cão. Amor sem um vintém. Mas com cachaça pra dar e revidar, vender nunca. Mulher é bicho ruim, ela tornava a dizer. Gritou pela rua. Acordou o deus dos cem-deuses e cuspiu na cara da avó. Aquela avó que era tudo vejam só. Depois saiu atrás do matuto que não era matuto. Sumiu na chuva. E depois ela fez o mesmo, na neblina. Foi a vontade de virar folha, melaço, alguma coisa doce ou leve pra adormecer sem sentir a cama mole e vazia. Homem é bicho burro, ele disse. Quase foi preso porque não pagou pensão. E ela quase morre de bebida. No fim não era ruim. Mulher ruim não morre assim. Ela morria. Morria fácil, fácil. Tanto mal, tanto bem. No fim nada disso tinha nome. Era só amor. Daqueles de mentir, sabe? Mentir amando, inverter fatos, fazer dramas...amor daqueles de briga sem pedir desculpas. Amor daqueles de culpa, de ser todo mundo culpado. Amor daqueles de tempo. De pedir tempo. Amor daqueles de dizer que se ama e que se tem cuidado pra não fazer ruindade. Amor daqueles de só querer paz.

Era só isso [o amor]?

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Em se tratando de amor, todo truque é pouco

Olha Astor, uma coisa te peço: no dia em que tiverem mesmo glandes rolando na calçada, me chama que quero ver, afinal, paus deslocados dos homens que os carregam em um espaço público é um evento para lá de contemporâneo. Porque, feliz ou infelizmente (aí só o tempo dirá), todas as coisas loucas, bestas e arriscadas que fiz foram por conta desse negócio de pau. Por exemplo, anteontem fui a um espetáculo de dança com minha autora e todo mundo estava nu. Vai dizer que não é uma coisa de louco sair de casa num sábado chuvoso e ver um monte de homem nu? E sabe o que era melhor? Eles estavam com máscaras, ou seja, a única coisa que lhes distinguia uns dos outros eram suas glandes, umas maiores que outras, mais grossas que outras, mais cortadas que outras. Tinha uma, inclusive, que não era glande, era enorme, daquele tipo que você só pode comer se for por cima, pra manter o controle da arrombação. Pensa que é fácil se manter apertadinha na minha idade? Não é não, meu querido. Aliás, esse negócio de bucetinha apertada é o que faz vocês chorarem enquanto nós vamos beber nas esquinas desse mundo de Deus me livre. Porque, apesar do machismo que se impõe na publicidade e do imperativo da anorexia como linguagem, o que temos por dentro é que é saboroso. Gorda ou magra, flácida ou rígida, tudo que somos numa hora ou noutra se resume à nossa bucetinha. É uma parte pelo todo, uma metonímia clitoriana, uma coisa de louco. E quer saber? Adoro ser mulher. Adoro. Não troco a alegria de esperar um telefonema por nada nesse mundo. E quer saber? Mesmo quando o telefone não toca, sou feliz, porque penso que escapei de boa, afinal, nada pode ser pior pruma mulher do meu naipe do que um homem frouxo e medroso, que perdeu a capacidade de entender que o que preciso mesmo é ser respeitada pelo que faço e pelo que sou. Aliás, confesso que, num certo sentido, sou meio macho. Gosto dessa coisa do corpo humano e suas nojeiras. O suvaco, por exemplo, é uma parte lindíssima, zona altamente erógena, que passa despercebida só porque libera secreção. Acho engraçado esse asco que as pessoas têm das secreções. Se não fosse pelas secreções nós nem estaríamos vivos! Se não suássemos, nossa temperatura subiria a cem graus em minutos e morreríamos por desnaturação de todas as nossas enzimas. Desculpa falar assim nesse tom meio médico, mas é que sou formada em educação física, fui monitora de fisiologia e me apeguei a esses jargões até hoje. No fundo até gosto, me dá um status foda, todo mundo acaba me achando mais gostosa do que realmente sou e isso pra mim é melhor do que ver o mengão ganhar no maraca. Mas confesso que não consigo falar de mengão assim sem entrar em detalhes sórdidos e acontece que agora preciso sair, pois tenho um aniversário pra ir e ainda nem comprei presente. A propósito, já te disse que sou a pessoa que melhor compra presentes nesse mundo? Mas isso conto depois, pois preciso me arrumar, que, depois dos trinta, todo truque é pouco.

domingo, 7 de novembro de 2010

O amor é um inferno ou é impressão minha?

Perdi minha senha, roubaram minha chave - eu mesmo tirei cópia pra que entrasse sem nunca mais pedir - , agiram como homem que não sossega enquanto não seduz e conquista, virei uma mulherzinha, pedi arrego, pinico, rezei pra Santo Antônio, gastei mais dinheiro que devia, mandei flores pro meu próprio endereço, tive medo de perder - perdi - , praticamente acendi o cigarro ao contrário. E fumei. E como é ruim fumar ao contrário: um estouro, uma sobrancelha queimada. Uma marca no queixo. Uma chupada mal dada.
A cada choro de um homem no mundo, Jupira, há uma mulher rindo e bebendo na esquina - um brinde eu escuto agora, um brinde com jarras de suco [e um copo de mijo]: cabeças grandes e glandes rolando na calçada.
E eu que cheguei a pensar um dia que, eu - eu [eu] = eu + eu, amando, me tornaria mais amável. Descobri que me tornei insuportável. E quando finalmente lembrei que existia o medo, já tinha me fodido dos pés à cabeça.
E se você que ama fica esperando o momento certo para se desnudar, arrancar todos os tampões e deixar vazar todos os buracos pensando que são eles que realmente importam, fique sabendo de uma coisa: eles importam. Só não queira nunca mais morrer quando o outro correr pra cobrir suas vergonhas, digo, seus buracos. Não deixe. Eles devem ficar abertos pra você sair por aí peidando, maquinando engenharias, lavando a alma, sangrando poeira. Nu. Nua. Besta. Chucro. Com mais mil e um buracos pra vazar e soprar por aí perdendo palavras invisíveis por essa sua brisa inconstitucional, ilegal. E se depois disso tudo ainda escorrer aquela lágrima fina feito fio de navalha, diga em tom alto de oração e com as mãos juntas: "nunca mais vai beber minhas lágrimas, não vai, não...".
É... todo mundo tem seu dia de dor de cotovelo. Antigamente, Jupira, a gente evitava aquele bar em comum, a casa do amigo em comum... o supermercado em comum... tudo pra evitar ver a pessoa. Hoje tem as redes sociais, os depoimentos escritos, os recados, os vídeos, as fotos expostas e comentadas...Antes eram só cartas rasgadas. Letras tremidas.
Mas agora...o que fazer? Ou você apaga todas as contas e some desse mundão virtual de meu deus ou então...[bloqueia no msn e exclui].
que inferno é o amor. Um inferno roxo.
amor?
A mãe de uma amiga dizia: "Tens um inimigo? deseja-lhe uma paixão."
e assim termina o dia.
Aliás, Jupira, você sabe qual foi o resultado do jogo hoje?

domingo, 24 de outubro de 2010

Esperança é o catso!

Essa coisa de escrever em prosa corrida e arfante tem horas que cansa, sabe? Ainda mais num dia como hoje, que chove lá fora e aqui dentro faz sol. Sabe fazer sol por dentro? Ter muita vontade de viver, muito lugar pra visitar, muita conversa pra jogar fora? Sim, porque não só os papéis e as lembranças que se enchem de poeira e precisam ser jogados fora. As conversas também. Vai dizer que você nunca ficou um tempão querendo dizer uma coisa pra alguém e por timidez, medo ou pura preguiça ficou quieto, na sua, como quem tá distraído vendo uma manada de elefantes passar pela janela? Pois então, quando isso acontece, só nos resta aguentar o tranco, porque palavra não dita é que nem jujuba no fundo do pote: depois de um tempo, vira gosma, gosma açucarada, que não serve nem praqueles momentos de abstinência. E te digo mais: não é só da abstinência de açúcar que falo não, me refiro a todas as abstinências do mundo, afinal, abstinência é abstinência em qualquer canto. Fartura é diferente. Quero ver o ser humano estar ali no maior bem bom e ficar pensando em regular a mixaria. Claro que estamos aqui falando de pessoas como nós, perdulárias, hedonistas e pusilânimes. Os outros, não sei como fazem, até mesmo porque isso é com eles, não posso ser analista de todas as alteridades do mundo, não é mesmo? Mas o que queria te dizer é que tô cansada de prosa. Queria poesia, uma coisa existirmos a que será que se destina pois quando turva-se a lágrima nordestina vi que és um homem lindo e que se acaso a sina do menino infeliz não se nos ilumina. Tudo bem, peguei pesado, parti logo pra Caetano. Mas tanto faria se tivesse ido pras bandas de Zeca Baleiro, que pra mim é tão ou mais poeta que Caetano. Vai dizer que quando você vira lousa pra que eu possa ser giz, quando você faz a minha carne triste quase feliz não é uma coisa de louco, de matar um de melancolia aguda? Aliás, já reparou que a melancolia de hoje não é mais como a de antigamente? Raciocina comigo: houve um tempo em que o passado era de fato passado, em que as pessoas davam aquela sofridinha básica por uma coisa ou outra, só pra ter o que fazer, só pra preencher de sentido os domingos chuvosos, ou os sábados de lua cheia. Hoje em dia é proibido. Quando você fica chateado por alguma coisa, logo te perguntam: quando foi isso? Se você diz que faz mais de uma semana, logo tem alguém pra te mandar deixar disso, pra não arrastar corrente, que o que passou, passou e coisa e tal. Ou seja, dez dias é o intervalo de tempo máximo que a contemporaneidade te permite refletir sobre um assunto que te incomodou antes dele virar obsoleto. Vai vendo, chegamos à era da digestão rápida de questões, da análise fast food e da alegria a qualquer custo. Pra mim, é tudo culpa do Prozac. E do Viagra. Se esses dois não existissem, as pessoas pensariam um pouco mais e não saíam por aí achando que tá tudo certo e que a esperança é a última que morre. Agora me diga, Astor: de que vale ser a última a morrer? Grandes merdas. Caguei pra esperança. Pra mim, ela é uma invenção burguesa, que nem o anti-aging, o colgate Total 12 e os cremes pra tonificar bundas. Quer saber? Das minhas rugas, cáries e celulites, cuido eu. São todas minhas conquistas. Agora chega, meu querido, vou tomar umas cachaças, que eu tô amarga demais pra beber cerveja.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Há uma loba aqui

Minha mãe casou com quinze anos e não era mais virgem. Acho que mamãe tinha mesmo um fogo nas entranhas de dar medo. Naquele tempo isso não era normal. Digo, não ser mais virgem aos quinze. Ou era? Devia ser mais comum do que se pensa. Mas eu casei com dezenove e não sabia nem que sangrava. Fui pra minha lua de mel sem saber nada. Ficamos mais de uma semana em uma casinha na beira do mar e nada aconteceu. Fui saber que doía quando cheguei de viagem. Perdi minha virgindade na casa da sogra. Ah. Esqueci de me apresentar. Eu sou Cláudia. A mais nova namorada do Astor. Ele está dormindo e eu vim escrever aqui escondida dele. Não posso nem te dizer que ele manda beijos, Jupira, porque ele não sabe que estou cometendo esse crime. Mas eu penso que as mulheres sempre fazem tudo escondido dos maridos. Penso mesmo que nós mulheres, somos as maiores criminosas da paróquia! kkkkkkkkkk!!! Mas ele não é meu marido. E nem pretendo que ele seja. Eu disse que sou a mais nova namorada dele, porque eu sei que vou continuar sendo a mais nova. Sempre serei nova. Porque já-já ele me dá um pé no traseiro dizendo que eu sou ciumenta. Mas eu não sou ciumenta. Mas tenho um traseiro bonito. De fazer inveja a qualquer uma da minha idade. Mas também não estou atacando ninguém. Mas qual é a mulher que não gosta de ter seu traseiro elogiado? Mas levar chute nele, não. Mamãe passou muito talquinho em mim kkkkkkkkk!. Eu fui casada. Tenho hoje cinqüenta e sete anos. Sou uma mulher com muita história pra contar. Sou mãe e avó! E fico vendo vocês mulheres hoje tão livres e cheias de energia e lembro que um dia fui assim também. Como eu disse, eu casei com dezenove anos. Não sabia nada. Quando descobri que eu podia ser uma putinha, meu marido me deu na cara. Dei nele também. Aprendi a bater, a cuspir, a trabalhar. A amar. Aprendi também a mandar a sogra a pastar um pouquinho, assim, na diplomacia, sabe, querida? Porque não sou chegada a escândalos. A minha avó é que fazia muitos escândalos na família. Descobriu que uma de suas filhas – que não era mamãe – adorava fazer sexo anal. Vovó gritou na frente de todo mundo que ela não fizesse mais aquilo, porque aquele buraco vergonhoso era só pra fazer cocô. Quando ouvi essa história da minha tia, eu já era casada e já tinha meu primeiro filho. E fiquei tensa. A partir daí quis muito fazer sexo anal. Até sonhava. Com muito medo de doer, comecei a experimentar com alguns objetos. Mas só fui fazer mesmo com o meu segundo namorado depois do meu marido. Não entendia o que havia com aqueles homens. Mas também depois que fiz, desisti. Não foi lá nada demais. Muito melhor o que temos na parte da frente kkkkkkkkkk!

Bem, Jupira querida, estou aqui dando uma de abelhuda – sou sim uma abelha rainha kkkkkkkkk – porque você falou em loba. Sou uma loba também. Somos, né, amiga. E quanto mais velha, melhor. Mamãe está viva até hoje. Embora não tenha namorado, ela não deixa de aprontar as delas. E olha que ela tem seus setenta e cinco anos! A última que ela fez foi subir no andaime do pintor! kkkkkkkkkkkk!!! Se morresse ia morrer louca e feliz. Eu acho que falta muito esse ímpeto nessa geração de hoje – que não é a sua, viu, querida. A sua geração é uma geração sensível, de meninas-mulheres que tentam outras coisas mais interessantes, sei lá, tenho essa impressão. Talvez seja você que é carismática e inteligente. Se bem que os homens dessa época de hoje são os piores. Esses sim, não tem problema em fazer sexo anal. Não em nós. Mas neles mesmos. Não é preconceito, não, longe de mim. Mas e a gente? Onde é que fica? Astor não me dá aborrecimentos, mas também tem um olhar lá não sei onde que não consigo alcançar. Quando por muito nada, ele me liga de algum lugar dizendo que volta na semana que vem. Geralmente é em outro estado. Mas é um bom menino. Quer alguma coisa pra vida melhor do que oferecem por aí. Vocês são muito queridos. Mas ele vai me matar por ter feito isso. Se eu não conseguir postar outra vez é porque ou ele me expulsou ou porque trocou a senha. Mas eu descubro. Eu sempre descubro tudo. Afinal eu sou a loba, né, querida! Kkkkkkkkkk! Ai, me desculpe. Acho que falei muita bobagem. Não sou assim como vocês, pessoas interessantes, que vêem o mundo de uma forma tão peculiar, mas quis chegar mais pertinho. Desculpe a intromissão. Mas vou aconselhar a vocês: escrevam coisas mais picantes! Adoro! Kkkkkkkkkkkkkkkk! Beijomeligamechamanoskype! Astorrrr vai me mataaaaaar!!!

p.s. coloquei a foto desse rapaz aí, porque é muito melhor que fotos sem sentido.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Loba à deriva

Astor, se eu te contar uma coisa você jura que não conta pra ninguém, mas pra ninguém mesmo? Pensa bem. Pensa bem que esse negócio de jurar é sério, já reparou que a pessoa, além de jurar, deve jurar por alguma coisa? Tipo juro pela minha avó mortinha na cama como sou virgem, sabe assim? Aliás, que exemplinho que eu fui arrumar, imagina, gastar uma jura pra provar que é virgem! Isso era bonito nos tempos de mil novecentos e guaraná com rolha, hoje em dia, o povo quer mesmo é provar que dá. Aliás, quer provar não só que dá, mas que dá muito, porque dar é muito bom e fim de discussão, abafa o caso, respira fundo, evita unha grande e pronto. Esquece esse negócio de hímen, que isso é passado, a onda agora é formar pelado, filho, isso que o povo gosta. Você deve estar estranhando eu falar assim nesse linguajar inapropriado para uma senhora da minha idade e distinção, mas, numa boa, tô precisando colocar pra fora a loba que me habita em noites de lua cheia. Diz que esse negócio de lua muda a maré e se muda a maré por que razão não iria mudar a gente que é setenta por cento de água? Mas não vou falar de astrologia não que não era meu ponto central, apesar de que hoje a Lua está em Gêmeos e Mercúrio, em Virgem, o que torna fundamental não deixar a mente que pensa obstruir a mente que sabe, percebe? Percebe mesmo ou tá querendo se fazer de sensível pras leitoras? Porque também tem isso, né? O personagem tá ali, meio que esperando a fala do outro, passando o subtexto a limpo e de repente se pega com a chance de mostrar que é um homem sensível, quem deixaria passar? Eu se fosse homem não deixaria não, mas não deixaria mesmo. Se bem que não nasci homem nem hermafrodita, sou mulher e no final das contas isso é que importa. Quer dizer, isso que importa no início das contas, no final o que importa mesmo é fazer o que se tem vontade na maior parte do tempo, deixando o tempo onde você faz o que não tem vontade se sentindo besta de existir. É claro que precisamos ter em mente que, mesmo nas melhores famílias, pra fazer o que se quer, é necessário também fazer o que não se quer. Pensando bem, se editar essa última frase dá pra colocar na traseira de um caminhão e viajar o Brasil, o que você acha? Vamos viajar? Eu e você? A gente se rebela e vai, ganha mundo, mochila nas costas, umas ideias na cabeça, um motelzinho de beira de estrada e pronto: fazemos nossa versão de Thelma e Louise, aquele filme, lembra desse filme? É incrível, o final então, elas saindo de cena desfiladeiro abaixo, de mãos dadas, que poesia aquilo. E nem venha me dizer que elas eram lésbicas que uma delas inclusive era bem comida à beça. A outra, não, a outra apanhava do marido inclusive, acho que o diretor quis dar esse contraste, esse balanço, essa coisa dialética ao filme, será? Nunca sei o que se passa na cabeça desse pessoal de cinema. Não sei nem quero saber, mas também não tenho raiva de quem sabe que raiva é um sentimento muito ruim, eu, por exemplo, quando tô raivosa, fico com umas olheiras no pé, uma coisa muito feia. E, vamos combinar, antes que haja uma revolução estética sem precedentes: tudo que os olhos querem ver no mundo é beleza. Agora chega, melhor eu ir dormir antes que fique tarde e meu corretivo vença. Sei que uma vez te disse que não usava maquiagem, mas corretivo não é maquiagem, corretivo é dignidade pastosa, ante-sala do olhar 43, escada rolante pra vontade de parecer mais jovem. Eu poderia inclusive ficar horas aqui falando de truques, mas, agora, justamente agora, não estou nem podendo mais fingir que estou fingindo cada vez pior e quando a situação chega nesse ponto, meu querido, corretivo é o de menos e o melhor braço do mercado é o de Morfeu. Só te peço pra pensar em tudo que te falei. Mas pensa com a mente que sabe. Depois me conta que desde já eu quero saber.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Alma tacanha

Já que estamos em época de eleição, fiquei pensando várias coisas e observando a linha férrea que dá na Central do Brasil.

Aqui em cima dessa ponte onde estou é agradável. Alguns moleques soltam pipas e outros moleques, que matam aulas, jogam pedrinhas lá embaixo, na linha do trem. Daqui de cima, também os malandros pulam e fogem da polícia. À noite é bom evitar passar por aqui. Mas com tudo isso, deste lugar que é alto fica bem gostoso ver a vida. Tava era muito calor aqui no subúrbio, Jupira. Agora melhorou um pouco. Ventou muito. E eu com calor não sou ninguém. Fiquei pensando: com tanto calor quase excomungo ou rejeito o sol, fonte da vida na Terra. E a água? Que não se sabe de onde ela vem. Quero dizer, vem do Rio Guandu, isso a gente sabe. Mas por onde ela passa ou o que passa nela é que não se sabe. Devia eu é fazer um curso técnico na Sedae. Ainda mais quando se sabe que no Rio Guandu tem tudo que não é de direito: sofá boiando, garrafa, saco de lixo, gente desovada, cabeça de cachorro. Melhor até parar por aqui. Tem dias que a água vem de cloro até a alma. O cheiro forte do cloro. O corpo da gente feito mármore que se clareia com água sanitária.

O subúrbio ainda tem certa beleza como nas lembranças do meu avô quando ele resolvia contar dos tempos do Rio Antigo. Mas a alma das gentes ainda é muito tacanha. Mas ainda sobra certa nostalgia de um tempo em que se colocava cadeira no portão e conversava com o vizinho. A tristeza é que não se vê mais essas coisas por aqui. A padaria da esquina é assaltada uma vez por semana, sem exagero. Fico com um aperto muito grande no coração porque todo dia quando eu vou lá comprar pão, o “baixinho”, sem ninguém saber, coloca de três a quatro pães a mais na sacola. Se eu peço quatro ele coloca seis ou oito dependendo do dia. O “baixinho” faz isso com todo mundo. Todo mundo sabe. A dona da padaria já disse que lá ele não serve mais pão, que não confia mais nele. Agora ele varre o chão e só. Mas nenhum cliente fala nada. Quero ver se ele perder o emprego quem é que vai lhe dar outro. O jornaleiro também foi assaltado outro dia. Essa banca de jornal da esquina, que fica ao lado da padaria, não sei como fizeram, mas a banca fica em uma escada que não sei como não despenca. Só vendo. Pra eu ler um jornal que preste __ se é que hoje os jornais prestam __ eu tenho que encomendar e pagar com antecedência pro jornaleiro porque os melhores jornais da cidade não têm saída nesse bairro. Tem é o tal do jornal que coloca os homens enforcados, desovados, decepados, sem um olho como matéria de capa. A casa ao lado da casa da minha tia foi surpreendida por tiros. Escutei daqui da minha janela do terceiro andar na outra rua. Mataram foi o marido de uma senhora que me viu crescer, lembro dela, lembro da voz dela, a voz fina que nunca consegui entender aquela voz. Outras: O coreto da pracinha foi tombado pelo patrimônio histórico. Isso eu li no jornal. Falaram da boa acústica dos coretos dos subúrbios.

Desde que eu cheguei aqui na casa de titia, tou sentindo moleza no corpo. Não sei se é calor ou se é uma tal de virose que anda solta.Sempre essas, hein: virose. Também penso que é da água. Da água que vem do Rio Guandu. Se não é da água deve ser da alma. Tem vírus de computador, deve ter vírus de alma, a ciência é que não descobre. Está mais ocupada é com clonagem. E o povo ocupado com beleza e lipo aspiração tentando afastar velhice e morte natural. As mulheres do subúrbio fazem ginástica. Vão pra academia e fazem abdominais e outras essas coisas. Umas não. Não tiram a barriga do fogão. Fico pensando na Elis Regina senão tivesse sido cantora. Estaria lá em Porto Alegre rodeada de panelas e filhos como eu ouvi dizer. O centro cultural aqui perto só funciona em época de aula na universidade. Nas férias fica fechado. Saiu no jornal que o povo daqui não vai ao teatro e ao cinema porque gasta o salário só com comida. A alma daqui do bairro é muito calada. Os homens cuidam dos carros nos finais de semana. Lavam os carros na calçada com o som alto. Carro é relíquia por aqui. E poder. Quem não tem, não é nada. As mulheres fazem telefonemas anônimos pras casas das amantes dos maridos pra meterem medo. Comércio forte aqui é boteco. Os meninos se não vão estudar viram chefes de boca de fumo. E a alma do bairro continua calada vendo tudo isso. A alma tem que comer pra suportar o tranco. E as últimas: a síndica que constrói um monte de casas na praia com o dinheiro que rouba do condomínio, é o que tão dizendo. Será que ela aprendeu isso com os candidatos? Bem, tanto faz ou tanto fez. Tomar posse é palavra de ordem. Eu posso? Eu tou é preocupado com alma. Alma tacanha como ela só.