domingo, 29 de agosto de 2010

Esculpindo nuvens

Hoje amanheci desacreditada da vida, Astor. Sério mesmo, uma coisa esquisita, de olhar pra multidão e não ver um número par, só ímpares, nenhum número primo, nenhuma constante pra chamar de minha, só um bando de variáveis bipolares. Não quero te assustar te dizendo essas coisas, afinal, você é um ser humano como outro qualquer, sem preparo pra ouvir minha descarga emocional, meus elétrons sem prótons, minha carência de nêutrons, minha química espalhada por um físico forte. Eu sou forte, sabe? Uma mulher grande. Meus peitos, por exemplo, não cabem nas mãos de um homem mediano. Isso porque agora sou manequim 42. Imagina quando eu era 46. É, meu querido, emagrecer é um processo estranho, porque você fica com dificuldade de aceitar que não é mais gorda, que a calça da loja do shopping cabe em você mesmo, que aquilo não é uma concessão da vendedora, nem do espelho, nem do zíper. Que o ‘gostosa’ escutado num raio de dois metros é pra você e não pra sua amiga de cinquenta e poucos quilos. Me sinto como se a manequim 46 que fui fosse a criadora e a manequim 42 que sou a criatura, sabe assim? Como se de mim tivesse nascido (ou morrido) outra. Mas nem sei porque tô te falando isso, acho que é porque acordei pensando no amor, nessa coisa cafona que é gostar de alguém. Na verdade, cafona, cafona mesmo, é saber que o tempo passa e a gente continua criando pessoas que não existem, só pra manter vivo o exercício de amar. Porque os viventes que estão por aí, na vida real, não fazem rir nem chorar, não deixam bambas as pernas e nem molhadas as calcinhas. Sim, não é porque sou personagem que não molho calcinhas, seu bobinho. Se quer mesmo saber, ando sempre com uma lingerie extra (de renda preta, naturalmente), na esperança de esbarrar com o homem que criei pra amar. Um boneco inflável sem ar, uma abstração cheia de palavras de ordem e ordem dos dias, um impedimento em meio ao fluxo, um acontecimento em meio à monotonia, um oásis sem deserto. Fico pensando nos requisitos desse homem e chego à conclusão de que prefiro que ele seja uma pedra bruta pra que de mim surja uma escultora. E, depois de pronta minha obra, só me restará fazer uma exposição, rodar o mundo, ficar famosa. E a todos aqueles que quiserem colocar preço em minha criatura, direi, em alto e bom som, com a boca cheia daquilo que vocês homens se esvaziam ao nos preencher: "Não quero gorjeta, faço tudo por amor".

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